TERMOS TRIÁDICOS, DA AUSTRÁLIA AO BRASIL CENTRAL AND BACK

A primeira aparição do fenômeno sócio-linguístico dos “termos triádicos” se dá nos estudos de parentesco a partir de um interessante esboço de terminologia feito por O’Grady e Mooney em 1973 a respeito dos Nyangumarda, povo falante de língua Pama-Nyungan do Noroeste da Austrália (1). A despeito do caráter lacunar e provisório do artigo, os autores distinguiam com clareza a presença de um sistema de termos, batizados por eles de “termos compartilhados” (shared terms), cujo traço singular seria a otimização das relações que poderiam ser indexadas a um só e mesmo termo de parentesco: os shared terms relacionavam simultaneamente o referente com o falante e com o interlocutor, de modo que três relações, e não somente uma, eram visualizadas por um único termo (referente-falante, referente-interlocutor, falante-interlocutor), embora o terceiro relacionamento fosse sempre previsível e calculável a partir dos dois primeiros.

Por exemplo, assumindo a posição de um Ego masculino em uma grade genealógica face ao seu aliado, o emprego do termo nyarrumpaci imediatamente designaria não só a esposa de Ego, mas também a irmã do cunhado, em um triângulo de relações, no interior do qual irmã, esposa, esposo, irmão e cunhados estariam configurados em três eixos distintos.

O que nos parece digno de nota no artigo, porém, para além do seu achado etnográfico, é a conjugação dos shared terms com aquilo que O’Grady e Mooney chamarão de “dual terms”, termos capazes de se referir a dois parentes entendidos como unidade. Os dual terms, como seria de se esperar, conseguem recortar a paisagem relacional dois a dois, delimitando, sobretudo, casais. Porém, frequentemente, os Nyangumarda empregam pronomes duplos para se referir a uma só pessoa, em situações de respeito entre afins – entre, por exemplo, irmão da mãe e filho da irmã –, prolongando a mesma lógica dos shared terms, só que pela via inversa: se os shared terms dividem uma só e mesma pessoa em dois, os dual terms, ao serem referidas a uma só pessoa, acabam por duplica-la. Essa breve aproximação entre shared terms e dual terms nos sugere que estamos diante de uma mesma operação lógica, com dois tipos de expressão, em que a noção de ponto de vista exerce um papel central, ora para ver um em dois, ora para ver dois em um.  

Teríamos ainda que esperar quase dez anos por um estudo mais detido dos termos triádicos, com o artigo Warlpiri Language Structure, escrito por Mary Laughren em 1982 (2). Povo falante de língua Pama-Nyungan, igualmente originários do Noroeste Australiano, os Warlpiri apresentariam dois eixos relacionais nas suas terminologias: primeiramente, termos de parentesco diádico ou binário que denotariam ambas as partes de uma relação de parentesco recíproca, tal como marido e mulher ou mãe e filho, e segundamente termos de parentesco tri-relacionais que, assim como no caso dos Nyangumarda, codificariam três relações binárias (referente-falante, referente-interlocutor, falante-interlocutor). Contudo, Laughren sublinhava que as categorias de parentesco warlpiri exibiam um tipo particular de relacionalidade – elas eram essencialmente centradas no sujeito de enunciação. Isto é, expressões relacionais de parentesco, como “minha mãe”, apontavam para um propositus que servia como ponto de referência para calcular a relação em curso – no caso de “minha mãe” tal propositus seria o próprio Ego, indicado pelo pronome possesivo. Do mesmo modo, de acordo com Laughren, os termos tri-relacionais warlpiri não poderiam ser entendidos sem a ancoragem específica na pessoa do “falante” que, por exemplo, falando de x para y, se aproveitaria do fato de que teria a mesma relação com x para fazer-se entendido para y.

Similarmente, em um artigo do mesmo ano e na mesma publicação, Neutralisation and Degrees of Respect in Gurindji, Patrick McConvell abordava os termos triádicos do sistema de parentesco dos Gurindji, povo igualmente falante de língua Pama-Nyungan e predominantemente presente no território norte (3). À luz dos padrões já observados, os termos triádicos ali incorporavam não só informação sobre a relação entre um referente X e um ponto de referência Y (por exemplo, na construção descritiva: X é irmão de Y), como também especificavam a relação do falante a um só tempo com o referente e o ponto de referência (por exemplo, a construção anterior, sob o primado do triadismo terminológico, resultaria numa equação que implicava o falante: Irmão de Y = meu marido). McConvell sublinhava a ocorrência frequente de termos triádicos nas relações de parentesco caracterizadas pela evitação, sobretudo entre sogra e genro. Por que essa aproximação estatística? Com efeito, o uso mais comum de termos triádicos entre os Gurindji se caracterizava pela eleição do ponto de vista do interlocutor como ponto de referência, de tal modo que o triadismo se expressava em sufixos possessivos da segunda pessoa (os quais se traduzem como: “teu irmão = meu primo”, “tua irmã = minha nora” etc): em suma, por meio do triadismo terminológico, um genro ao conversar com sua sogra marcava no discurso a proeminência do ponto de vista da sua interlocutora.

Uma diferença inicial já se firma entre os artigos de O’Grady/Mooney, Laughren e McConvell. Se os dois primeiros sugerem a ocorrência de termos triádicos em que o propositus era sobretudo o falante, McConvell nos oferece agora um trânsito mais sutil das perspectivas no interior da terminologia, uma vez que o ponto de vista do interlocutor passa a ser codificado para infletir uma atitude de deferência. Falante e propositus já não mais coincidem como ancoragem das relações, o que abre espaço para uma conjunção marcada entre interlocutor e propositus – podemos, assim, nos referir a termos que são ou Ego-Centrados (ponto de vista do falante eleito como propositus), ou Alter-Centrados (ponto do interlocutor eleito como propositus). Em um artigo também de 1982, acerca dos termos diádicos entre os Manarayi, falantes de língua Gunwingguan do Território Norte da Austrália, Francesca Merlan exacerbava justamente essa diferença e assinalava que, em qualquer contexto discursivo do parentesco manarayi, um falante teria sempre a opção de se referir a um terceiro ou a partir do seu próprio relacionamento com esse outro, ou em termos de relacionamento do interlocutor para a terceira pessoa (4). Por exemplo, uma mulher conversando com sua prima cruzada (FZD) poderia referir-se à sua própria mãe pelo termo de parentesco (‘mãe’) que expressa seu próprio relacionamento, ou pelo termo de parentesco (‘tia’) que designa aquele da interlocutora. Há não só outros participantes na situação discursiva, mas a marcação do ponto de vista do outro no interior dos termos torna-se socialmente relevante.

Em um artigo de 2004, ampliando o escopo de estudos para incluir também o Brasil Central além da Austrália, Vanessa Lea trazia à baila a importância dos termos triádicos no parentesco Jê e na língua Mêbengokre, e propunha — em contraste com os estudos pregressos australianos — considerar os termos triádicos para além do seu suposto valor de face, considerando-os a partir da sua própria lógica:

Em português ou em inglês, por exemplo, se eu (como Ego feminino) estou falando com minha irmã a respeito da minha filha, posso perguntar “Você viu minha filha?” ou “Você viu tua sobrinha?” Ambas as possibilidades soam estranhas porque minha filha é simultaneamente a sobrinha da minha irmã. Poderia evitar este embaraço perguntando: “Você viu Fulana?” (ou seja, empregando o nome pessoal da minha filha). É uma estratégia que deixa de lado os relacionamentos entre as três pessoas envolvidas. Certas, se não todas, línguas Jê, e dos aborígenes australianos, desenvolveram termos específicos que apontam simultaneamente para duas ou três relações, ou ressaltam duas relações, deixando inferir a terceira. Em mebengôkre, no contexto do exemplo citado, diria akadjwojtx / akadjwojte. Analiso tais termos como uma equação, no sentido de significar, neste exemplo: Tua ‘sobrinha’ (filha classificatória) = minha filha. (5)

Em um parágrafo subsequente, Lea sublinhava o que estava em jogo: ao evidenciar, a um só tempo, as relações entre locutor e referente, referente e interlocutor, e entre locutor e interlocutor, os termos triádicos maximizavam a inclusividade. Retomando Merlan, Lea notava que na tríade locutor-referente-interlocutor existe um deslocamento do propositus, isto é, do ponto de referência a partir do qual se calculam as relações de parentesco. Pois no sistema euro-americano, com suas grades terminológicas baseadas na delimitação de posições genealógicas, o que importa é o Ego, que serve em todo instante como quantificador universal das relações de parentesco: se “Eu” sou filho, então fulano é pai, siclano é tio, e assim por diante. Algo muda, no entanto, nas relações triádicas — o propositus agora é ocupado pelo interlocutor. Não trata-se da minha filha, mas sobretudo — e é isto o que é colocado em relevo nos termos triádicos — da tua sobrinha. A lexicalização especial que os termos triádicos oferecem é o evidenciamento de uma outra relação no interior da relação original, que desloca o Ego para fora do ponto de referência, alterando no caminho a própria natureza da relação. O “Ego” se esvazia, ao mesmo tempo que o “Alter” se positiva, retro-condicionando as relações de parentesco. Isso significa que, deixando implícita a relação entre locutor e interlocutor (irmãos), os termos triádicos explicitam a relação entre interlocutor e referente (sobrinha e tio), e entre locutor e referente (filha e mãe); contudo, como na articulação de figura e fundo, o que se figura no primeiro plano também modula e afeta a percepção do que permanece no fundo: os irmãos já não são mais irmãos, mas os respectivos tio e mãe da sobrinha.

Em 2018, no IX Encontro Macro-Jê, Marcela S. Coelho de Souza retomava o debate com Vanessa Lea e, levando a proposta de Lea a sério, sublinhava que os termos triádicos longe de serem tão-somente uma manipulação terminológica, com fins ou a expor ou a escamotear determinadas relações, dar-nos-iam um dado essencial sobre o próprio princípio de funcionamento do parentesco enquanto tal:

Os estudos de parentesco ameríndio evidenciaram, já há bastante tempo, a importância de se tomar em consideração a multiplicidade de níveis de classificação, e de subconjuntos terminológicos, para a descrição adequada desses vocabulários. A amplamente reconhecida necessidade de levar em conta a distinção e articulação entre termos vocativos e referenciais é apenas o aspecto mais óbvio dessa complexidade. A racionalização habitual — tomar um desses conjuntos ou níveis (em geral o referencial, oferecido ao antropólogo ou linguista no contexto da elicitação) como básico do ponto de vista semântico, reduzindo os demais a recursos acionados pelas pessoas para “manipular” a estrutura — peca não só por gerar descrições superficiais, mas também por reduzir a criatividade das pessoas (e da linguagem) à manipulação “interessada” dos relacionamentos. Como se houvessem relacionamentos separáveis do interesse que as pessoas têm umas pelas outras. Quero sugerir, como alternativa, o projeto aparentemente quimérico de uma cartografia que procurasse abranger a complexidade dos recursos linguísticos mobilizáveis na criação, sustentação e transformação das relações de parentesco. (6)

Isto é, a própria deîxis social estaria salientada, pois os termos triádicos traziam à tona a pragmática das relações de parentesco: não se tratava mais de definir classes de parentesco a partir de interpretações genealógicas, mas de recriar performativamente os relacionamentos a partir do seu contexto interacional. Em suma, saindo da homogeneidade das classes, chegava-se à sutileza diferencial e diferenciante dos pontos de vista. A fórmula “tua sobrinha = minha filha” recriava as relações de parentesco, ao mesmo tempo que articulava pontos de vistas disjuntos. Com efeito, Coelho de Souza mudava os termos da fórmula de Lea, mas preservava a lógica subjacente ao localizar os termos triádicos no parentesco kisedje:

Para me referir à minha cunhada, falando com minha sobrinha, preciso levar em conta — se desejo que minha enunciação confirme as relações particulares que nos unem, e assim minha capacidade de sustentá-las — que aquela que é mãe para ela, para mim é uma muito respeitada (isto é, querida) afim. Seria uma afronta ao sentimento que as une não evidenciar, ao mesmo tempo, o meu — bem como a diferença entre eles. Seria desfazer nosso parentesco. (7) 

“Tua sobrinha = minha filha”, “Tua mãe = minha cunhada”: de um lado a outro, os termos triádicos formulam e produzem pessoas específicas em interações socialmente definidas, e jogam luz, como quer Coelho de Souza, sobre o próprio funcionamento do parentesco. Isso porque os termos de parentesco, em geral, são inerentemente relacionais, porém, dizê-lo não redunda na mera constatação de que lá onde é possível fixar o termo “x” é igualmente possível definir uma relação x R y (por exemplo, no termo diádico “pai” forçosamente encontramos a relação entre “pai” e “filho”): a “relação” da qual falamos não é uma unidade vazia que aglutina ou separa elementos sem confundir-se com eles, pelo contrário, a relação só pode existir nas terminologias a partir da assunção de um centro, interno à relação, a partir do qual a relação é calculada. Ou seja, ao nos fixarmos no termo “x”, estamos falando também de determinadas coordenadas que atualizam a relação desde o seu interior: a relação x R y não existe de fora, mas só pode ser figurada na medida em que x diz “meu y”, ou y diz “meu x”. Estranho pressuposto, portanto: dois termos só podem se relacionar na medida em que são capazes de referir a si mesmos incorrigivelmente como centro da relação. Porém, uma complicação adicional deve ser sublinhada: nunca há de fato somente dois termos numa relação de parentesco, uma vez que é só possível fixar a relação entre dois agentes a partir de uma terceira pessoa, ou melhor, dois termos só podem estar relacionados entre si na exata proporção com que estão relacionadas com um terceiro (por exemplo, dois primos não são somente dois primos, mas sempre filho de alguém que se relaciona com o sobrinho de alguém, ou dois irmãos não são somente dois irmãos, mas sempre um cunhado que se relaciona com o marido da cunhada etc). O pressuposto deve ser re-escrito: dois termos só podem se relacionar entre si na medida em que são capazes de se relacionar a um terceiro que, então, confere-lhes a capacidade de serem centros da relação. A capacidade de se referir como centro da relação (seja Ego, seja Alter) não se dissocia da capacidade de se referir a um terceiro.

Pois para entendermos os termos triádicos, precisamos eleger um ponto de vista privilegiado a partir do qual as três relações se iluminam (tua sobrinha, tua mãe), mas ao mesmo tempo precisamos também converter uma relação na outra por meio de uma triangulação (tua sobrinha = minha filha, tua mãe = minha cunhada). A aparente dificuldade da frase anterior advém dos sintomas de um problema mais geral, relativo a uma ambiguidade da própria estrutura dos estudos de parentesco e seu método genealógico: ela parecia admitir a possibilidade de ser lida, em certas passagens, como uma teoria das relações puras, e, em outras, como uma teoria das relações na medida em que apareciam para Ego. Ou as duas possibilidades devem ser cindidas de uma vez por todas, sob o risco de anularem-se mutuamente, ou devem ser coordenadas, sob o pretexto de serem simultaneamente relações inteligíveis. Ora, nos parece claro que a descrição das relações de parentesco como atividade auto-regulada, capaz de gerir e gerar a si mesma por uma causalidade própria, não exclui a possibilidade de uma descrição do sujeito da relação, capaz de referir a si mesmo como ponto de vista. A questão é inteiramente oferecer uma passagem entre os dois extremos.  

De fato, o problema do ponto de vista no parentesco poderia ser formulado da seguinte forma: é graças à capacidade de determinado Ego de se referir incorrigivelmente a si mesmo que as relações são relacionadas corretamente no campo social mais amplo, porém, ao mesmo tempo, é graças à sua capacidade de ser o pivô entre duas outras relações que Ego pode referir-se a si mesmo. Há na auto-remissão de um Ego a si mesmo a mesma razão geométrica que encontramos na remissão de parentes a outras parentes, porém, se aqui tal remissão se atualiza como figuras com as quais é possível se relacionar, ali tal remissão se atualiza como o Eu mais íntimo. Voltando-se sobre si mesmo, o Ego costura uma relação à outra à sua volta: sendo pivô de relações, Ego volta-se sobre si mesmo. Porém, cumpre dizer que a remissão eficiente de um “eu” a si mesmo é condicionada pela remissão eficiente de uma relação à outra – um “Ego” só chega a si mesmo depois de enviar corretamente outros Egos a outros Egos. Por isso, nos termos triádicos, tanto “Ego” quanto “Alter” podem ser o centro da relação: contanto que a estrutura triádica de remissão de relações seja preservada, a capacidade de se referir incorrigivelmente como centro da relação se manifesta, seja para outro, seja para mim. Por isso, em situações extremas de encontro com a alteridade, quando já não é possível triangular a presença do outro com relações já existentes, a capacidade de se referir incorrigivelmente como centro da relação encontra-se ameaçada — se o “Eu” não pode pivotar a relação com o outro numa outra relação, é o próprio “Eu” que começa a soçobrar.

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  1. O’GRADY, G., MOONEY, K. Nyangumarda Kinship Terminology. Anthropological Linguistics, vol. 15, pp. 1-23, 1973
  2. LAUGHREN, M. Warlpiri Kinship Structure. In Languages of Kinship in Aboriginal Australia (Org. J. Heath, F. Merlan e A. Rumsey), Sydney: Oceania Linguistic Monographs, p. 72-85, 1982
  3. MCCONVEL, P. Neutralisation and Degrees of Respect in Gurindji. In Languages of Kinship in Aboriginal Australia (Org. J. Heath, F. Merlan e A. Rumsey), Sydney: Oceania Linguistic Monographs, p. 86-107,1982
  4. MERLAN, F. ‘Egocentric’ and ‘Altercentric’ Usage of Kin Terms in Mararayi. In Languages of Kinship in Aboriginal Australia (Org. J. Heath, F. Merlan e A. Rumsey), Sydney: Oceania Linguistic Monographs, p. 125-141,1982
  5. LEA, V. Aguçando o entendimento dos termos triádicos Mebengôkre via aborígenes australianos: dialogando com Merlan e outros. LIAMES, n. 4, p.36, 2004
  6. COELHO DE SOUZA, M. Porque o parentesco é sempre triádico, in Línguas e culturas Macro-Jê, Barra do Garças, MT: GEDELLI/UFMT, p. 206, 2020.
  7. Id, p. 214

SEGUNDA LINHA DO PASSADO

O deslocamento do dualismo diametral dravidiano para o contexto amazônico não só o re-descrevia sob a forma de um dualismo concêntrico (1), mas também reenviava as duas categorias básicas do parentesco – a afinidade e a consanguinidade – a uma operação sobre o ponto de vista. Agora tanto afins quanto consanguíneos tornavam-se funções do passado, elementos no interior de uma cadeia pregressa de relações: a emergência do consanguíneo era condicionada a uma série anterior de relações, que já o faziam consanguíneo, assim como a emergência do afim era condicionada a uma série anterior de relações, que já o tornavam afim. Isto é, tratar afins como se já fossem consanguíneos tornava-os consanguíneos na faixa proximal dos cognatos; tratar consanguíneos como se já fossem afins tornava-os afins na faixa distal. Somos obrigados a imaginar aqui um mundo social onde as relações mais elementares só se apresentariam como imagens do passado: são consanguíneos aqueles que já eram consanguíneos, são afins aqueles que já eram afins.

Contudo, essa remissão ao passado sugere um problema: se só são consanguíneos aqueles que já eram consanguíneos, e se só são afins aqueles que já eram afins, como é possível renovar as relações, fazer novos consanguíneos, fazer novos afins? Para propor um futuro nesse contexto relacional é também necessário criar um novo passado: se eu trato fulano como se nós já fôssemos afins em épocas passadas, então, se tudo correr de forma adequada, ele será meu afim; se eu trato siclano como já fôssemos consanguíneos em épocas passadas, então, se tudo correr de forma adequada, ele será meu consanguíneo. Curiosamente, estamos aqui falando de operadores sociológicos — afinidade e consanguinidade — ao mesmo tempo em que falamos de operadores causais ou sequenciamentos específicos de ações. Isso não é sem consequências para o desenho geral do espaço social do qual falamos: não há mais um ponto de vista privilegiado a partir do qual é possível apreender a estrutura (por exemplo, se eu sigo o caminho dos afins, eu consigo decifrar as trocas matrimoniais e, a fortiori, o quadro global das relações sociais, incluindo as relações entre consanguíneos), mas há tão-somente estruturas sequenciais que nos dão a cada momento pontos de vista possíveis (se eu sigo determinada sequência de relações pregressas, então eu consigo ver a gênese de um afim, ou a gênese de um consanguíneo, mas tão-somente naquele determinado ponto onde a cadeia de causa e efeito foi seccionada).

Assim, duas perguntas se impõem em um primeiro momento: 1) como conceituar as categorias básicas do parentesco (consanguinidade e afinidade) a partir de referências obrigatórias a uma história pregressa de interações? 2) como alterar o passado para que haja futuros novos?

Uma pista nos ajuda a levar adiante essas perguntas. Carlos Fausto e Marcela Coelho de Souza, em um texto dedicado a resgatar as origens ameríndias do pensamento de Lévi-Strauss, retomam o célebre encontro de duas hordas Nambikwara, como descrito em Tristes Trópicos. Imaginemos um cenário ideal em que duas hordas de um mesmo grupo étnico se encontram face a face, e um dos lados deseja transformar o outro em doadores de esposa. Se estivermos corretos, a troca matrimonial só poderia começar se e somente se a dádiva inicial de irmãs fosse entendida pelo grupo doador como sendo na verdade a reparação por uma troca anterior, isto é, uma remissão ao passado – o grupo doador simplesmente retribui as mulheres que no passado havia recebido do grupo tomador; assim, o grupo tomador de esposas, para conseguir extrair as esposas que deseja, precisa retro-jetar uma segunda linha do passado que os re-descreva como irmãos das mães dos homens do grupo doador (ou como filhos dos irmãos das mães), mesmo que eles não o sejam de fato, de tal modo que a doação atual venha a tornar-se o retorno das mulheres que foram doadas em uma geração anterior. E é exatamente isso o que acontece, de acordo com Fausto e Coelho de Souza, entre as duas hordas Nambikwara: os conjuntos de homens das duas hordas, que nunca haviam se visto antes, se chamam uns aos outros de “cunhados” e encetam o maquinário da troca, pois, retro-jetando relações de afinidade, mesmo fictícias, eles conseguem pro-jetar para o futuro relações de afinidade reais ao relacionarem seus filhos a partir das dívidas e créditos matrimoniais fixados na geração anterior (2).

Ora, precisamos agora de uma pista que nos ajude a esclarecer o modo como consanguíneos também retro-jetam o seu passado de consanguinidade. Imaginemos, por outro lado, um cenário ideal em que os pais de uma criança só poderiam ser “pais” se já estivessem relacionados à criança antes mesmo de serem pais. Como isso poderia se dar? O fenômeno da couvade nas TBAS nos dá uma atualização dessa possibilidade lógica: em contextos amazônicos, os pais da criança recém-nascida se vêem às voltas com uma série de proibições que lhes restringem cada movimento, e isso se dá porque o corpo da criança está perigosamente ligado ao interior dos corpos dos pais numa identidade consubstancial. Portanto, para os pais, todo e qualquer contato com a alteridade torna-se potencialmente letal, pois gera ecos na criança recém-nascida – desse modo, os pais devem reduzir a sua superfície de contato com o mundo exterior em um sem-número de restrições de comportamento e códigos alimentares até que a criança atinja sua autonomia pessoal (3).  Isso nos diz que a condição para os pais se tornarem pais não é eles trocarem os seus poderes reprodutivos entre si, mas se relacionarem entre si e com a criança como se já fossem pais: em contextos amazônicos, pais e criança a princípio não estão relacionados como consubstanciais – a princípio a criança, como nos diz P. Gow, é um completo estranho cujo status ontológico ainda não foi decidido –, no entanto, na medida em que agem um face ao outro e face à criança como se fossem radicalmente consubstanciais, eles se tornam consubstanciais. Podemos encontrar um exemplo mais específico entre os Guayaki, como relatado por Pierre Clastres. Desde o instante do nascimento da criança entre os Guayaki, P. Clastres, nos diz, o pai encontra-se em estado bayja (4): isso significa que ele agora exerce um poder atrativo sobre todos os seres, que se precipitam e se arremessam na sua direção. Na floresta, desde os animais desejados como presas até os jaguares gravitam agora na órbita do pai da criança, impelidos por um tropismo irresistível na sua direção — podemos ver como esse novo estado impõe novos problemas. A força através da qual o pai se transforma em caçador magnificado (todas as presas preferenciais praticamente se arremessam na direção das suas flechas) é a mesma que o transforma em caçador atrofiado, i.e, uma presa virtual (cada vez mais os jaguares esperam o momento propício para assaltá-lo). Trata-se de um estado de báscula ontológica: a um só tempo caçador e caça, o pai deve agora ir à floresta e recuperar a sua humanidade ameaçada – mas, mais importante, ao afirmar que não há nenhum passo seu que não gere ecos na sua própria criança, de tal modo que todo e qualquer contato com a alteridade deva ser radicalmente extinguido, ele age como se ele e a criança já fossem consubstanciais, até que se tornem consubstanciais.

Tanto no exemplo da afinidade quanto no exemplo da consanguinidade acima, vemos a cristalização de um ponto de vista como um acúmulo lógico de relações – ali onde vemos uma sequência necessária de causa e efeito, ali também vemos um consanguíneo, ou um afim. Se, por um lado, há conversão de relações em outras relações em um fio necessário de causa e efeito, há, por outro, a delimitação de possibilidades relacionais: aqui um afim, ali um consanguíneo. Mas precisamos novamente de um esclarecimento suplementar. Em um contexto em que as categorias básicas de parentesco (consanguinidade e afinidade) só podem existir à luz de uma cadeia pregressa de relações (“como se já fossem”), toda e qualquer gênese pressupõe a introdução de uma segunda linha do passado que, sobrepondo-se à primeira, a transfigura e a reorienta: os não relacionados passam a se perceber como se já fossem desde sempre relacionados, os não afins passam a se perceber como se já fossem sempre afins, os não consanguíneos passam a se perceber como se já fossem sempre consanguíneos.

Se retomamos a fórmula básica de Lévi-Strauss, “eu” só posso ser “irmão” da minha irmã na medida em que “eu” funciono como pivô de uma relação de consanguinidade (“minha irmã”) em uma relação de afinidade (“esposa de outrem”) e vice-versa. Ademais, fica claro agora que “eu” só posso perceber a minha irmã como esposa de outrem na medida em que um outro agiu sobre mim e introduziu uma outra linha do passado: e essa segunda linha realiza uma operação sobre o meu ponto de vista, que me faz apreender que por trás da minha irmã há sempre um homem pelo mesmo motivo que por trás da minha mãe há sempre um outro homem também, que não é o meu pai. Eu devo trocar a minha irmã, pois na minha própria condição de existência eu encontro uma dívida, ou melhor, entranhada na própria condição do meu “eu” está uma troca pregressa. A aparição do afim, ao introduzir a segunda linha do passado, gera uma situação de báscula ontológica em que eu apreendo a minha irmã como esposa de outrem sob a condição de apreender a mim mesmo como herdeiro de uma dívida e, nesse sentido, sou eu também esposa de outrem. Entranhada na própria condição do meu “eu” está uma troca pregressa, e isso significa dizer que quando de fato é efetuada a troca matrimonial e eu concedo a minha irmã para o meu afim, a báscula ontológica cessa e eu retorno a uma condição estável. Podemos mencionar os casos melanésios que se encontram no célebre livro comparativo de M. Strathern, The Gender of the Gift – agora podemos distinguir com mais precisão que o simbolismo de gênero é central para compreender o que estamos chamando de segunda linha do passado e báscula ontológica; na verdade, um novo sentido se aclara na obra de M. Strathern, pois longe de ver ali o gênero como um dado contingencial, agora podemos considerá-lo como propriedade estrutural da própria troca matrimonial.

Do mesmo modo, se supormos que a couvade acontece em um regime de casamento avuncular, o mesmo pode ser dito: eu só posso ser pai da minha filha na medida em que eu funciono como pivô de uma relação de consanguinidade (“minha filha”) em uma relação de afinidade (“futura esposa do irmão da minha esposa”) e vice-versa. Ademais, eu só posso perceber minha filha como esposa do avúnculo (ou do filho do avúnculo) na medida em que um outro agiu sobre mim e introduziu uma segunda linha do passado: e essa segunda linha realiza uma operação sobre o meu ponto de vista, que me faz apreender que por trás da minha filha há um homem pelo mesmo motivo que por trás da minha esposa há um homem também. Eu devo trocar a minha filha, pois na minha condição de existência eu encontro uma dívida: entranhada na própria condição do meu “eu” como “pai” está uma troca pregressa. A aparição do afim, ao introduzir uma segunda linha do passado, gera uma situação de báscula ontológica, em que eu apreendo a minha filha como esposa de outrem sob a condição de apreender a minha mesmo como portador de uma dívida matrimonial e, nesse sentido, sou eu também esposa de outrem. Entranhada na própria condição do meu “eu” está uma troca pregressa, e isso significa dizer que quando de fato é efetuada a troca matrimonial e eu concedo a minha filha para o meu afim, a báscula ontológica cessa e eu retorno a uma condição estável. Prolongando esse pensamento, podemos ver o caso da couvade amazônica e da luta do pai guayaki com o seu estado bayja como sendo também uma luta contra a báscula colocada pela aparição do afim – só que ao invés de fazê-lo por meio da troca, faz-se aqui pela reiteração da identidade corporal, pelos laços de consubstancialidade. Precisamos sublinhar que essa segunda linha do passado cria uma imagem especular que vai de um gênero a outro: assim como para um Ego masculino sempre haverá um outro homem por trás da sua cônjuge, podemos dizer que para  um Ego feminino sempre haverá também uma outra mulher por trás do seu cônjuge; a distinção entre WT e WG torna-se tão relevante quanto a distinção entre HT e HG. A título de pista suplementar, podemos mencionar o caso bororo: J. Crocker nos diz que as mulheres afins (i-maruga) descritas pelo ponto de vista de um Ego feminino são fundamentalmente importantes no momento do parto, quando Ego feminino está dando à luz a sua criança; a i-maruga é geralmente uma mulher mais velha, FFZ (a qual coincide no sistema bororo com MM de Ego), que deve conduzir os procedimentos parturientes e, caso os auspícios rituais durante o parto não deem certo, assassinar a criança. Ora, fica claro que assim como um homem pode se ver como um tipo de esposa, a mulher também pode ser como um tipo de marido, na medida em que deve a HG o homem que tirou dela — não à toa, a própria imagem da i-maruga recebendo nos braços o jovem rebento assinala claramente “o retorno” do “marido”, que havia sido do seu grupo de origem. Há algo como uma báscula ontológica, que precisa ser resolvida aqui também (5).

Podemos propor, sob essa moldura de referência, uma revisão do papel central ocupado pela afinidade no modelo de parentesco lévi-straussiano. Com efeito, o afim ali é a figura mais importante, não porque represente a introdução da Regra em um domínio que a natureza deixara obscuro, mas sim porque é a figura central na introdução da segunda linha do passado. É ele quem cria o cenário de uma báscula ontológica no passado imediato, o que provoca a consanguinidade atual como uma resposta necessária – “nós sempre fomos consanguíneos” –, ou provoca a afinidade atual como uma resposta necessária – “nós sempre fomos afins”. Retraduzindo em termos perspectivistas, é o afim quem exacerba o desequilíbrio entre pontos de vista, transformando-o em um desequilíbrio interno ao ponto de vista, o que provoca a necessidade imediata de estabilização – a eleição de uma das categorias básicas do parentesco (afinidade ou consanguinidade) torna-se, portanto, o meio efetivo de um sequenciamento equilibrado para o desequilíbrio imposto pelo afim. Ademais, sabemos das críticas feministas feitas à obra de Lévi-Strauss – de acordo com elas, o parentesco lévi-straussiano redundaria em um esquema sociológico em que sempre eram homens que trocariam mulheres –, porém, podemos dizer agora que o que encontramos, com a reconstrução do modelo lévi-straussiano a partir desses casos, é algo radicalmente diferente: longe de termos aqui homens conduzindo as trocas matrimoniais, temos na verdade algo como um embaralhamento de gêneros em que a troca só pode ser efetuada graças à percepção de si por intermédio de uma androginia imposta (homens trocam mulheres, pois veem-se fundamentalmente como esposas e mulheres trocam homens, pois veem-se fundamentalmente como maridos).

A remissão das categorias do parentesco ao passado, colocada pelo dualismo concêntrico amazônico, nos leva a repensar os esquemas mais básicos de integração social — a consanguinidade agora só existe como um segundo elemento, que vem depois de um primeiro, assim como a afinidade agora só existe como um segundo elemento que responde a um primeiro. Por fim, a introdução da segunda linha do passado, como acontecimento por excelência do afim, nos indica que a importância da afinidade é o desequilíbrio necessário que injeta entre o agora e o antes.

Grupo Nambikwara, 1938, Mato Grosso (foto: Claude Lévi-Strauss)

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  1. VIVEIROS DE CASTRO, E. O problema da afinidade na Amazônia, In: A inconstância da alma selvagem, São Paulo: Cosac Naify, 2002
  2. FAUSTO, C. COELHO DE SOUZA, M. “Reconquistando o campo perdido: o que Lévi-Strauss deve aos ameríndios”, Revista de Antropologia v. 47 nº 1, São Paulo, USP, 2004
  3. VILAÇA, A. “O parentesco como um fato da cosmologia na Amazônia”, texto apresentado no GT “Uma notável reviravolta: antropologia (brasileira) e filosofia (indígena)”, XXV Encontro anual da ANPOCS, Caxambu, 2001
  4. CLASTRES, P. Crônica dos índios Guayaki: o que sabem os Aché, caçadores nômades do Paraguai, Rio de Janeiro: Ed. 34, p. 14, 1995
  5. CROCKER, J. “Selves and Alters among the Eastern Bororo”. In Dialectical Societies. The Gê and Bororo of Cental Brazil (Org. D. Maybury-Lewis), Cambridge, MA: Harvard University Press, p. 300, 1979 (essa referência nos foi dada por Eduardo Viveiros de Castro)

O “EU” DO PARENTESCO

Entre os Maori, Prytz-Johansen nos conta, existe uma figura pronominal singular: o “eu” do parentesco (“kinship I“). Um Maori, onde quer que esteja, pode alternar entre diferentes instâncias discursivas: ora pode remeter-se ao sujeito de enunciação do seu próprio “eu”, ora pode remeter-se ao sujeito de enunciação do “eu” global, referente à totalidade maori (1).

Um chefe maori conta: “Um grupo rival assassinou meu ancestral, Taureka. Tal grupo vivia em Hokianga. Este país era deles, deste grupo. Minha casa era Muriwhenua, era minha residência permanente porque meu ancestral morava lá. Mais tarde deixei Muriwhenua por causa deste assassinato. Depois tentei vingar-me e o povo de Hokianga foi derrotado e tomei posse do velho país. Por causa desta batalha, toda Hokianga foi finalmente tomada por mim direto para Maunganui, e eu morei no campo porque todas as pessoas foram mortas” (2). Como observa Prytz-Johansenn, todos os eventos descritos pelo chefe maori transcorreram há séculos, contudo, isso não o impede de narrar os eventos em primeira pessoa – o “eu” do parentesco. Um Maori diz para outro Maori “Você nasceu em mim”, e pode fazê-lo tão-somente porque o pronome “eu”, que qualquer um pode ocupar, até mesmo o interlocutor, pode sempre significar a expressão magnificada de um “eu” que ultrapassa tanto falante quanto ouvinte.

A partir desses dados sumários, podemos nos interrogar: por que quando se trata de iluminar uma subjetividade global, os Maori não recorrem à primeira pessoal do plural – imagem por excelência do coletivo que se quer coletivo – mas ao “eu” magnificado do “kinship I”? Longe de ver aqui a solução simples de um desaparecimento do “eu” na massa coletiva, precisamos enfatizar que é graças à relação que um “eu” traça consigo mesmo que ele encontra a métrica para estabelecer relações globais: o “eu” não pode se magnificar e, portanto, se tornar função do coletivo, sem antes apresentar uma combinatória básica de elementos capaz de se contrair ao nível pessoal de um “eu” individual, assim como de se expandir ao nível inter-pessoal de um “eu” do parentesco.

Pois o que está em jogo não é somente um grupo que se atualiza no aqui e agora sob a forma de um “eu” total – mais especificamente, estamos falando de um “eu” que atravessa o presente, remonta ao passado arqui-primordial e se expande igualmente ao futuro: a realidade viva do “eu” do parentesco é que ele nasce com o primeiro ancestral e morre somente no último membro vivo do grupo. E isso se dá porque “eu” não posso ter uma ideia distinta de mim mesmo sem supor que outros tenham a mesma natureza que “eu” (3): não só o meu “eu” foi legado a mim por outrem, que me ensinou a dizê-lo (e esse outrem aprendeu a dizer “eu” com outrem, em uma regressão ao infinito), como também dizer “eu” é já pressupô-lo como dado generalizável, perfeitamente alienável pois também perfeitamente alheio ao sujeito que o diz (transferível adiante em uma projeção infinita). Assemelhando-se a si mesmo, o “eu” costura relações em todas as direções: relacionando-se consigo mesmo, o “eu” se torna a causa eficiente das demais relações.  

Página 26 do livro “The Maori Canoe”, de Elsdon Best

Página 30 do livro “The Maori Canoe”, de Elsdon Best (4)

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  1. PRYTZ-JOHANSEN, J. The Maori and His Religion in Its Non-Ritualistic Aspects, Hau Classics: Manchester, p. 28, 2012 [1954].
  2. Id. p. 29
  3. LEVY, L. O autômato espiritual: a subjetividade moderna segundo a Ética de Espinosa, Porto Alegre: L &PM, p. 488, 1998
  4. BEST, E. The Maori Canoe, Skinner Government Printer: Wellington, 1925

LA PENSÉE LÉVI-STRAUSS

Não se deve atribuir problemas filosóficos a pensadores que não os pensaram explicitamente, mas é ainda tentador notar padrões que, por mais que sejam meras marcas d´água, nos permitem vislumbrar um espectro conceitual — e por “espectro conceitual” entendemos um pensamento que se revela sistemático à revelia do pensador que os concebeu. Com efeito, se nos concentramos na mecânica das ideias e não na presença cartesiana do sujeito pensante aos seus próprios estados mentais, não seria tão invasivo assim sugerir os contornos de um pensamento rigoroso às margens das formulações de um pensador.

Falamos isso, pois, lendo alguns trechos da obra de Lévi-Strauss dedicados ao parentesco, não podemos deixar de notar uma teoria do conhecimento que, apesar de jamais ser abertamente conceituada, informa a linguagem empregada. Nesses trechos, a antropologia de Lévi-Strauss apresenta-se como uma psicologia, na medida em que o ato de observar e estudar as práticas sociais não se dissocia do ato de remetê-las a restrições mentais que apresentam a forma de estruturas de oposição lógica (1). Por exemplo, o átomo de parentesco é definido tanto pela sua qualidade objetiva (o sistema atitudinal que objetivamente conforma as relações entre tio materno, pai, mãe e criança), quanto pela distribuição de oposições que ele atualiza: independente das feições gerais da sociedade ou dos tipos de filiação em questão, há sempre a mesma relação fundamental entre os quatro pares de oposições que são necessários para a elaboração do sistema (2). Estruturado a partir de quatro termos (irmão, irmã, pai, filho), o avunculado apresenta dois pares de oposições correlativas, de tal modo que em cada uma das gerações há sempre pelo menos uma relação positiva e uma relação negativa: isto é, se a relação entre irmão e irmã é positiva, a relação entre esposa e esposo é negativa; se a relação entre pais e filho é positiva, a relação entre avúnculo e filho é negativa etc. Girando a combinatória de elementos, o que se revela não é a invariância substantiva dos termos, mas um sistema lógico de distribuição de oposições, em que só é possível apreender um termo relativamente a outros termos que lhe servem como imagem especular invertida (3).

Mais importante, a despeito das características metodológicas da antropologia de Lévi-Strauss, que abertamente são tributárias de semiologia, gostaríamos de sublinhar a tese implícita em tais trechos sobre o conhecimento enquanto tal. Pois o que permite a Lévi-Strauss propor a dissolução de fenômenos sociais em alguns esquematismos de reciprocidade é justamente a tese de que as ideias do parentesco, sendo da mesma ordem de magnitude dos fenômenos objetivos do parentesco, devem ter as mesmas propriedades das práticas. O que isso significa? Longe de propor um substrato lógico ou uma infra-estrutura simbólica que determinaria as práticas materiais, Lévi-Strauss põe as duas variáveis em um mesmo plano de consistência: a ideia verdadeira do que é o avúnculo é efeito da ideia verdadeira do que é a relação entre cônjuges, não porque o etnólogo teria acesso privilegiado à lógica das relações sociais, mas justamente porque a ideia verdadeira dos cônjuges produz a ideia verdadeira do avúnculo pela mesma razão geométrica com que esposa e esposa relacionam-se com o irmão da esposa. As leis do entendimento do parentesco são as mesmas leis do próprio parentesco.

Assim, o etnólogo não possui uma faculdade de afirmar ou negar que se defina como um poder absolutamente separado dos fenômenos observados: o inteligir do parentesco é também uma paixão em sentido espinozano (4), pelo simples motivo de que jamais afirmamos ou negamos o que quer que seja a respeito de um sistema de parentesco, pelo contrário, é o parentesco que afirma ou nega em nós algo dele mesmo. O etnólogo é o lócus de uma atividade auto-regulada de conhecer que se dá nos mesmos termos da auto-regulação das próprias práticas sociais — antes de pensar o parentesco, o etnólogo é como uma autômato espiritual, um ponto de passagem que dá a ver o encadeamento das ideias de parentesco sob uma forma que, apesar de distinta, preserva as mesmas operações lógicas dos fatos observados.

Em um célebre trecho de As Estruturas Elementares do Parentesco (1949), Lévi-Strauss explicitavas as bases da reciprocidade descrevendo uma cena banal de compartilhamento de vinho em um bistrô no sul da França:

But the ritual of exchange does not take place only at ceremonial meals. Politeness requires that the dish, salt, butter and bread be offered to one’s neighbour before serving oneself. We have often observed the ceremonial aspect of the meal in the lower-priced restaurants in the south of France, especially in those regions where wine is the principal industry and is surrounded by a sort of mystical respect which makes it ‘rich food’ par excellence. In the small restaurants where wine is included in the price of the meal, each customer finds in front of his plate a modest bottle of wine, more often than not very bad. This bottle is similar to his neighbour’s bottle, as are the portions of meat and vegetables which a waitress passes around. Nevertheless, a remarkable difference in attitude towards the wine and the food is immediately manifested. Food serves the body’s needs and wine its taste for luxury, the first serving to nourish, the second, to honour. Each person at the table eats, so to speak, for himself, and the noting of a trifling slight in the way he has been served arouses bitterness towards the more favoured, and a jealous complaint to the proprietor. But it is entirely different with the wine. If a bottle should be insufficiently filled, its owner will good-humouredly appeal to his neighbour’s judgment. And the proprietor will face, not the demand of an individual victim, but a group complaint. In other words, wine is a social commodity, while the plat du jour is a personal commodity. The little bottle may contain exactly one glassful, yet the contents will be poured out, not into the owner’s glass, but into his neighbour’s. And his neighbour will immediately make a corresponding gesture of reciprocity. (5)

Novamente, o que está em curso aqui é o mesmo autômato espiritual ao qual nos referimos antes: lá onde poderíamos adivinhar um francês falando de hábitos franceses ou o mero exercício de uma consciência voltada à auto-referência, vemos na verdade o delineamento de uma mecânica de ideias que, encadeadas uma na outra, coloca o próprio pensador à margem de si próprio.

Lévi-Strauss e sua então esposa, Dina Dreyfus, durante trabalho de campo no Mato Grosso, 1938 (foto: Musée du Quai Branly)

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  1. KECK, F. “L’esprit humain, de la parenté aux mythes, de la théorie à la pratique”, in Archives de Philosophie, Tome 66 vol.1, p. 9-32, 2003
  2. LÉVI-STRAUSS, C. “A análise estrutural em linguística e antropologia”, in: Antropologia Estrutural, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985
  3. MANIGLIER, P. “De Mauss à Claude Lévi-Strauss: cinquante ans après. Pour une ontologie Maori”. Archives de Philosophie, numéro spécial “Merleau-Ponty”, dir. Etienne Bimbenet et Emmanuel de Saint-Aubert, Tome 69, Cahier 1, Printemps, 2006
  4. SPINOZA, B. “Short treatise on God, Man, and his Well-Being”, In: Complete Works, Hackett Publishing Company: Indiana, p. 63, 2002
  5. LÉVI-STRAUSS, C. The Elementary Structures of Kinship, Boston: Beacon Press, p. 58, 1969 [1949]

PARENTESCO E CONHECIMENTO

Se vemos duas pessoas interagindo à distância, não há como ter uma medição exata da relação a partir de uma perspectiva externa (1) — por mais que as duas pessoas me expliquem os motivos, as razões, e os hábitos mentais em jogo por trás de cada gesto, só me é possível encontrar a justa proporção da relação entre as duas na medida em que as duas estão relacionadas comigo (2)

Deve-se dizê-lo: a forma por meio da qual uma relação se estabiliza entre terceiros não se dissocia da forma por meio do qual uma relação se diferencia e se estabiliza para um Ego. E isso se dá porque o objeto de investigação (a relação) não se dissocia do método de investigação (a relação): só é possível conhecer determinada relação a partir dos parâmetros de uma outra relação que, apesar de ocupar a mesma ordem de magnitude do fenômeno em questão, produz um acontecimento cognoscível. 

A questão é inteiramente conseguir diferenciar a relação que se quer inteligível (a relação entre terceiros) da relação por meio do qual essa relação pode se tornar inteligível (a relação entre Ego e terceiros). Como fazê-lo?  

Vendo duas pessoas interagindo, eu não paro em momento algum de me lançar em um jogo de perspectivas: ora me imagino na posição de um, ora me imagino na posição de outro. De certo modo o que torna o relativismo inerente à relação tão exaustivo é que em momento algum eu posso ocupar as duas posições ao mesmo tempo: sob o pretexto de entrar na relação, eu só consigo acessar, a cada momento, uma fatia parcial da relação. Porém, esse dinamismo se altera por completo quando eu literalmente entro na relação: sendo não mais um ponto de vista flutuante (que vai e volta entre um ponto e outro), eu me transformo num ponto de conversão de uma relação em outra. O que eu quero dizer com isso é algo simples: entrando na relação, eu dou um ponto fixo para o meu Ego, que cessa de se confundir com os as demais posições, para então conseguir ver pela primeira vez a relação enquanto tal. Por exemplo, em um primeiro momento, eu vejo dois irmãos interagindo entre si: se os vejo à distância, eu me perco no jogo de espelhos acima referido. Contudo, se entro na relação, e passo a ver na irmã a minha mãe e no irmão o meu tio materno, então, tracejando a relação que os dois estabelecem comigo, eu posso ver pela primeira vez a relação que os dois estabelecem entre si: aquela que é irmã para o meu tio é também esposa para o meu pai, e mãe para mim; aquele que é irmão para a minha mãe, é cunhado para o meu pai, e um tipo de pai para mim também (pensando num contexto matrilinear). Fixando o meu Ego em um ponto, eu já não tenho mais acesso a fatias parciais da relação, mas produzo um modo de conversão da relação em outras relações: eu não sou mais a proliferação de pontos de vista, mas uma apreensão global de relações parciais. 

Em muitos trechos de As Estruturas Elementares do Parentesco (1949), vemos o emprego da mesma lógica para decifrar as terminologias de parentesco: para conseguir gerar a rosácea de conversões de uma relação à outra dentro do sistema, Lévi-Strauss precisa assumir determinada posição dentro desse sistema, isto é, a perspectiva de um Ego privilegiado. Tem-se assim um método curioso: para fazer as relações aparecerem, deve-se fixar Ego em um ponto dentro do sistema para que, assim, as relações apareçam uma às outras. Fingindo kantismo, gera-se uma modalidade anti-kantiana de relações que não cessam de se articular em um arranjo sistemático, para além do modo como aparecem para um Ego:

For example, most of the kinship systems of South American tribes practising cross-cousin marriage identify grandparents with parents-in-law. This custom is easily explained by the practice of avuncular marriage. When a girl marries her maternal uncle, her parents-in-law and her grandparents are identical. However, this purely feminine perspective ought, from the male point of view, to result symmetrically in identifying the parents-in-law with the sister and the brother-in-law. Yet this does not happen. For a reason open to many different interpretations the feminine perspective is the one imposed upon the group. On the other hand, cross-cousin marriage establishes a third system of identification which is generally adopted, namely, that which groups the cross-uncle and the cross-aunt under the one term with the spouse’s father and mother (3)

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  1. STRATHERN, M. Introduction to Wives and Wanderers in a New Guinea Highlands Society: Women’s Lives in the Wahgi Valley (Mary Olive Reay), Canberra: ANU Press, p. ii, 2014
  2. WAGNER, R. “Analogic kinship: A Daribi example.” American Anthropologis 4, p. 639, 1977
  3. LÉVI-STRAUSS, C. The Elementary Structures of Kinship, Boston: Beacon Press, p. 121, 1969

AFINIDADE SEM AFINS

Na economia simbólica da alteridade das Terras Baixas da América do Sul (1), duas cenas adquiriram valor paradigmático: aquela da vendeta guerreira entre os antigos Tupinambá, e aquela do ritual de cabeças tsantsa entre os Jívaro. Na primeira, após ser capturado, o inimigo era transformado em afim por meio da doação literal de uma esposa, até que por fim fosse devorado no festim antropofágico, servindo como alimento para todos menos o seu assassino; posteriormente, todos os envolvidos adquiriam novos nomes (2). Na segunda cena, após ser capturado e decapitado, o inimigo tinha a sua cabeça transformada, por uma série de procedimento estéticos-simbólicos, em uma identidade jívaro genérica e, em seguida, ocupava diferentes posições sociais de afinidade entre os membros do grupo em um teatro de parentesco, até que fosse por fim descartada, deixando no ventre das mulheres a possibilidade de uma nova vida (3). Nas duas cenas, as relações entre alteridade e afinidade se iluminavam por completo, uma vez que o inimigo só poderia ser plenamente codificado como inimigo na medida em que ocupasse a posição estrutural da afinidade. Não se trocavam mulheres com o “afim” aqui, mas nomes, identidades sociais, posições subjetivas etc (4): nas cenas vemos a afinidade, mas ela se encontra separada do “matrimônio” em sentido clássico, isto é, das estruturas materiais conducentes à manutenção da lógica do parentesco. Esse mesmo modo de funcionamento pode ser observado em casos que, a priori, estariam radicalmente afastados de uma lógica predatória.

Por exemplo, entre os Pirahã, o casamento é algo incrivelmente instável, pois cada indivíduo experimenta em média, ao longo da vida, mais de meia dúzia de uniões (5). E por ocasião das separações, o homem que se separa da mulher separa-se também das suas filhas, que passam a ser capital matrimonial do atual marido da ex-esposa, ao mesmo tempo que ele adquire para si as atuais filhas da atual esposa. Isso significa que a instituição do casamento entre os Pirahã, longe de ser mera cessão de mulheres, representa, sobretudo, a aquisição de novas aliadas (filhas da atual esposa) que podem gerar novos aliados (maridos das filhas da atual esposa), expandindo a esfera de influência política de Ego masculino.

Essa retradução do parentesco encontra expressão em um ritual singular: de quando em quando os Pirahã realizam uma festa cujo propósito exclusivo é “roubar” mulheres casadas de outros homens; curiosamente, a mulher “roubada” não só integra a categoria de mulheres esposáveis, como também consente com o “roubo” e o acerta previamente com o homem “ladrão”, isto é, o “roubo” não passa de uma encenação, pois não viola as normas matrimoniais e segue à risca a lógica dos casamentos em série. Contudo, por que o casamento entre os Pirahã deve forçosamente assumir a forma de um roubo que não rouba?

Uma vez que o casamento não é conceituado como cessão de mulheres, mas como aquisição de aliadas que geram novos aliados, o “roubo” não significa extinção da afinidade mas a sua afirmação ulterior — o casamento pirahã pode e deve assumir a forma de um “roubo” paradoxalmente porque em momento algum a subtração é vista, mas tão-somente adição, acréscimo. Em uma sócio-cosmologia que não equivale a afinidade à troca de mulheres (perdas e reparação), a afinidade pode ser vista sempre por meio de imagens que parecem negá-la. Assim como nos casos tupinambá e jívaro, a relação com o afim torna-se aqui também uma relação com um valor indeterminado dentro de si, que magnifica a pessoa humana, mais do que afirma propriamente uma relação aliancista. Se entre os Tupinambá e Jívaro vemos uma afinidade sem afins, entre os Pirahã vemos uma afinidade afirmada em si mesma, apesar dos afins, que “roubam” e não trocam — por isso pode-se falar em afinidade “potencial”, pois a afinidade se apresenta sempre como pura potência, fora de formas atuais.

Acampamento Pirahã, próximo a Transamazônica. Rio Maici. (foto: Ezequias Hering, 1981)


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  1. VIVEIROS DE CASTRO, E. Imagens da Natureza e da Sociedade, In: A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia, Ubu Editora: São Paulo, p. 291, 2017
  2. CARNEIRO DA CUNHA, M. VIVEIROS DE CASTRO, E. “Vingança e temporalidade: os Tupinambás”. Journal de la Societé des Américanistes, LXXI: p.191-217, 1985
  3. TAYLOR, A-C. “Remembering to forget: Identity, Mourning and Memory Among the Jivaro”. Man, 28 (4): p. 653-678, 1993
  4. VIVEIROS DE CASTRO, E. O problema da afinidade na Amazônia, In: A inconstância da alma selvagem, São Paulo: Cosac Naify, p. 157, 2002
  5. ANTÔNIO GONÇALVES, M. A produção da afinidade no sistema de parentesco pirahã, In: Antropologia do Parentesco: estudos ameríndios (Org. Eduardo Viveiros de Castro), Rio de Janeiro: Editora UFRJ, p 221, 1995

MÉTODO LINGUÍSTICO E PARENTESCO

Dentro das terminologias de parentesco, o significante (elemento fônico) e o significado (função semântica) deslizam continuamente na ladeira da realidade. Cada um “transborda” os enquadramentos que lhes são atribuídos pelo seu parceiro (1): o significante busca ter outras funções além de sua função própria, o significado procura expressar-se por outros meios que não o seu significante. Peguemos um caso mínimo, a título de ilustração: no átomo de parentesco, aquele que é irmão da mãe (MB) para um filho, ou seja, um consanguíneo, pode rapidamente ser re-descrito, a partir do ponto de vista do pai, como irmão da esposa (WB), ou seja, um afim; da mesma forma, aquele que é filho para o pai é também filho para a mãe, no entanto, se estamos falando de um sistema matrilinear, então ser filho da mãe carrega mais peso do que ser filho do pai, daí que tenhamos o caso singular de um filho que é mais filho da mãe do que filho do pai. De um lado, temos um só e mesmo significante gerando significados distintos (homônimos), do outro, temos um só e mesmo significado gerando significantes distintos (sinônimos). De fato, tanto significante quando significado são assimétricos; acoplados, eles estão em um estado de equilíbrio instável. É graças a este dualismo assimétrico da estrutura dos seus signos que um sistema de parentesco pode se mover: a posição “adequada” do signo se desloca continuamente como resultado da adaptação às exigências da situação concreta.

O balanço provisório e sempre reversível entre homônimos e sinônimos pode ser observado no caso dos Arara, povo falante de língua caribe que ocupa a margem esquerda do rio Iriri no Pará, tal como descrito por Márnio Teixeira Pinto (2). Toda vez que existe a reiteração de um mesmo ponto de vista dentro do sistema matrimonial arara (aquela que é mulher para mim é também mulher para você) tal coincidência acarreta em uma ampliação do campo matrimonial por meio de um procedimento que afirma na geração seguinte a diferenciação do ponto de vista negada na geração anterior (aquela que é filha da mulher da qual você abdicou por mim torna-se mulher para você).

Isto é, quando dois homens se encontram em disputa pela mesma mulher, o homem que abriu mão da mulher para o outro adquire um direito sobre a sua filha. Sabendo da preferência avuncular do sistema matrimonial arara, podemos dizer que toda mulher cedida é transformada a posteriori em uma irmã que se cedeu, o que confere ao “irmão” direitos matrimoniais sobre a filha da “irmã”. Em termos algébricos, tal procedimento redunda em uma duplicação da mulher que antes se apresentava como dividida: a mesma mulher em disputa entre dois (um em dois) é transformada em duas (dois em um). Em termos linguísticos, toda vez que surge um caso de sinônimo onde deveria existir um homônimo (“aquela que é esposa para mim é também esposa para você” no lugar de “aquela que é irmã para mim é mulher para você”), volta-se à afirmação do homônimo que foi negado pelo sinônimo, graças à filha adquirida da “irmã” que fora cedida.

Habitação Arara (Foto: Carlos Namba, 1981)

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  1. KARCEVSKI, S. Du dualisme asymétrique du signe linguistique, Cahiers Ferdinand de Saussure n. 14, p. 18, 1954
  2. TEIXEIRA PINTO, M. Entre Esposas e Filhos: Poliginia e Padrões de Aliança entre os Arara (Caribe), In: Antropologia do Parentesco: estudos ameríndios (Org. Eduardo Viveiros de Castro), Rio de Janeiro: Editora UFRJ, p 229, 1995

UM MUNDO SEM SUJEITO

Para os Kaingang, Juracilda Veiga nos diz, os espíritos dos mortos são movidos por um ímpeto retromaníaco: apesar de apartados do mundo dos vivos, eles retornam repetidamente aos locais que habitavam e amavam quando ainda vivos, não para ali permanecer, mas para levar consigo seus entes queridos (1). Daí que os cuidados funerários se destinem a proteger os parentes próximos dos assédios do morto — por exemplo, quando uma mulher fica viúva “ela não pode se levantar antes que todos da casa tenham se levantado. Se ela sair para passear ninguém pode ir na frente dela”, de modo que qualquer pegada da viúva seja apagada, com o propósito único de despistar o olhar ávido do falecido, que deseja encontrar rastros da esposa.

Do mesmo modo, quando um homem fica viúvo ele deve permanecer escondido no mato por um período de quinze a trinta dias; durante todo esse tempo, ele permanece inteiramente imóvel, deitado, enquanto o seu cunhado assume as responsabilidades da manutenção da sua vida, fazendo-lhe fogo, trazendo-lhe comida e água. Aqui, qualquer possibilidade de rastro, por menor que seja, do viúvo é suprimido por meio da existência do seu duplo, que passa a agir no mundo por ele, sem prover ao espírito da esposa evidências que a conduzam ao objeto desejado. Tanto no caso do viúvo quanto no caso da viúva, a casa é pintada de preto e folhas de kiprer são colocadas nas portas. Tais alterações da paisagem cotidiana visam afastar os espíritos dos mortos, que voltam ao seu antigo mundo sem conseguir reconhecê-lo: as suas antigas casas estão agora esvaziadas, desfiguradas, e não há rastros daqueles entes que um dia os mortos amaram.

Os procedimentos funerários kaingang assemelham-se então a um jogo perspectivo com o morto, pois, ao termo de uma série de deslocamentos, os vivos se antecipam ao ponto de vista do morto, para em seguida desorientá-lo por completo em uma armadilha (2). Isto é, há um nexo de intencionalidades complexas, por meio do qual os vivos criam um modelo do mundo dos mortos, espelhando cada uma das suas ações e reações em uma cadeia específica de acontecimentos; contudo, o modelo reitera somente o ponto de vista dos mortos, até que este ponto de vista já não mais coincida com o mundo dos vivos. Ao contrário de uma armadilha comum, que imita o ponto de vista do animal até sobredeterminá-lo pelo ponto de vista do caçador, o procedimento funerário kaingang imita o ponto de vista dos mortos, para em seguida fechá-lo em uma mônada auto-contida, sem contato com o mundo dos vivos.

Mais precisamente, tem-se por fim a construção de um ponto de vista que, sem os seus referentes externos, passa a rodopiar em si mesmo, sustentado no seu próprio vazio. O morto volta à sua casa, mas a sua casa lhe é inteiramente irreconhecível. Para se chegar a tal ponto de vista esvaziado, os vivos devem construir um mundo ele mesmo esvaziado, um mundo de objetos que não testemunham à favor do morto, um mundo no qual o morto não pode e não consegue reconhecer reflexos da sua realidade pessoal. O morto procura rastros dos seus antigos parentes, mas nada encontra. Em última instância, os vivos criam para o morto um universo em que o seu ponto de vista pode até existir, mas tão-somente para perceber um mundo que não é o seu — efeito medusa, graças ao qual a visão de um mundo que projeta a ausência do sujeito faz o sujeito ausentar-se de si mesmo.

Família kaingang de Passo Fundo (RS). Foto: acervo Museu do Índio, 1922.

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  1. VEIGA, J. Organização social e cosmovisão Kaingang: uma introdução ao parentesco, casamento e nominação em uma sociedade Jê Meridional, Dissertação de Mestrado, Campinas: Unicamp, p.159, 1994
  2. GELL, A. Vogel’s Net. Traps as Artworks and Artworks as Traps. Journal of Material Culture 1(1), p. 20, 1996

AFINS SEM AFINIDADE

O problema central do parentesco piaroa é: o princípio de endogamia pressupõe que o grupo local represente a si mesmo como um grupo fechado de parentes, unidos por elos de consubstancialidade, porém, os matrimônios só podem acontecer sob a legitimação de vínculos de afinidade (1). Uma solução se apresenta para esse problema por meio da aplicação de tecnônimos: graças à redescrição constante de parentes, ora a unidade do grupo cognático é exaltada, ora os vínculos de afinidade são sublinhados. Imaginando um mapa de parentesco em cujo centro se encontrasse determinado Ego, haveria sempre parentes que se apresentariam como entidades duplas, a um só tempo afins e consanguíneos, de tal modo que, para os propósitos do casamento, a ênfase poderia ser dada à característica afim, ao passo que, para os propósitos de consolidação do grupo local, a ênfase poderia ser dada à característica consanguínea. Assim, o mesmo procedimento que abriria a mônada endogâmica para a troca matrimonial poderia também fechá-la para a celebração do grupo de consanguíneos.

Em linhas gerais, os tecnônimos piaroa são termos relacionais que se apresentam como uma elaboração secundária do sistema terminológico de parentesco. Por exemplo, após o nascimento de uma criança, o pai e a mãe adotam tecnônimos para expressar a relação que cada um passa a ter face ao filho — isto é, a relação de afinidade original é suplantado por uma relação nova de consubstancialidade (esposa torna-se “mãe do meu filho”, e marido torna-se “pai do meu filho”). Por mais simplório que seja, esse exemplo já é suficiente para apresentar algumas características formais da tecnonímia em questão: primeiro, por meio do emprego do tecnônimo, Ego traça a sua relação face a Alter, não a partir de uma geração ascendente, mas a partir de uma geração descendente (assim, por exemplo, a relação entre primos cruzados que justificara o matrimônio passa a ser redescrita como uma relação entre pais de uma mesma criança); segundo, a equação básica da tecnonímia visa reiteradamente suprimir a relação de afinidade anterior, de tal modo que a afinidade que fora real para os pais já não é mais real para os filhos.

De acordo com essa morfologia relacional, por exemplo, após o nascimento da criança, os níveis ascendentes passam a ser re-descritos igualmente como parentes próximos de Ego, seja tornando-se “avós da criança”, seja tornando-se “parentes da criança”: como um abalo sísmico, o nascimento da criança rearranja todas as peças do baralho do parentesco, enfatizando-lhe a face consanguínea. Mais importante, ao contrário da lógica de parentalidade que vínhamos observando até aqui, o nascimento da criança não é determinado por um movimento que parte dos parentes e segue ao recém-nascido, pelo contrário, o nascimento da criança retro-projeta mudanças nos estatutos prévios de parentesco. À luz dos rearranjos, o efeito tecnonímico do recém-nascido pode ser entendido como reiteração da natureza consanguínea da unidade cognática, que se impõe sobre as relações previamente estabelecidas de afinidade — a mulher de Ego continua-lhe sendo afim, mas é agora mãe (cha’hu) e definitivamente consanguínea do seu filho. Ademais, em função das mudanças retroativas, um homem deve manter um fluxo constante de presentes tanto na direção dos seus pais quanto na direção dos seus sogros — uma vez que a unidade endogâmica é afirmada, ambos agora são “avós da criança”, o que redunda em obrigações iguais. Nota-se que os pontos de vista não estão aqui para serem ocupados por sujeitos, mas são pontos de acúmulo de relações: saindo do filho e indo até os pais da esposa, eles se transformam em “avós da criança”; saindo dos “avós da criança” e voltando até o “pai” da criança, ele agora se transforma em um dos seus filhos. O “pai” não é um sujeito que percebe as relações à sua volta, mas um ponto que faz determinadas relações aparecerem umas às outras.

Em um primeiro momento, seria possível conceber o sistema terminológico dos Piaroa como sendo uma codificação da troca direta prescritiva entre primos cruzados. Contudo, a regra de casamento toma como principal oposição aquela entre consanguíneos e afins e não aquela entre paralelos e cruzados, isto é, um Ego se casa não com a MBD mas com a filha do cunhado do pai. Nesse sentido, a expressão da lógica matrimonial em termos de “afins dos pais” sugere um princípio de múltiplas afinidades, ou repetição intergeracional de alianças — a mesma tecnonímia que refigurava afins como consanguíneos consegue realizar o efeito oposto, de transformar consanguíneos em afins. Surpreendentemente uma nova torção é ainda aplicada à terminologia de parentesco pela prevalência do modelo endogâmico, que transforma MBC e FZC não em primos cruzados, mas também em parentes próximos, os quais são, dentro do ideal de endogamia, privilegiados no cálculo matrimonial — em suma, a oposição paralelos/cruzados pode ser infletida pela oposição consanguíneos/afins, para afirmar a reiteração de alianças prévias, e pode ser infletida pela oposição nós/eles, para reiterar a manutenção da aliança no círculo cognático. Trata-se de um jogo duplo segundo o qual a endogamia é entendida a um só tempo como repetição de relações afins e como manutenção da aliança dentro do grupo de parentes.

Aqui encontramos uma primeira resposta para a pergunta de Lévi-Strauss em EEP — Como pode existir uma regra positiva de casamento em uma sociedade sem uma divisão clara entre “nós” e “eles”? Ela pode existir a partir de um modelo interacional de endogamia. Ao invés de dois grupos de descendência trocando mulheres entre si, temos aqui um só e mesmo grupo que se preserva no tempo por meio de um ato singular, que restringe a troca no círculo de cognatos, ou melhor, que realiza a troca para fixar os limites desse círculo. Como em um passe mágico, houve a troca matrimonial, mas ao fim o que temos é somente o círculo de cognatos: surge o fenômeno de afins sem afinidade (2), isto é, pessoas que exercem o papel estrutural da troca, embora a troca enquanto tal esteja apagada. Trocam-se mulheres, mas o que se vê é somente o círculo de cognatos, dos já-relacionados. Ao termo de sucessivas transformações, a troca estaria a serviço de um sistema que privilegiaria a menor distância genealógica e a repetição de alianças prévias — e a mesma característica é observada em um grupo tupi.

Entre os Parakanã, Carlos Fausto assinala que o sistema matrimonial resulta da articulação entre duas tendências gerais: dravidianato e avunculato, casamento com a prima cruzada bilateral e casamento com a filha da irmã (3). Combinadas as duas variáveis, nós teríamos o que ele chamará de “transmissão patrifiliativa da aliança”. Isso porque, dentro de um regime avúnculo-patrilateral as trocas matrimoniais se dão às custas do filho — um homem deve ceder uma irmã para quitar o débito adquirido no casamento do pai, o que redunda em um cunhado que dá a sua filha para reciprocar a esposa adquirida em detrimento do seu filho.

Esse gesto de partilha possui necessariamente uma implicação triádica, uma vez que não é mais possível falar de dois agentes ou dois grupos em um nexo simétrico, mas três: em cada cessão de mulher, três homens estão implicados (F, S, MB). Ademais, os três agentes não estão isolados, mas recortam o corpo social em três gerações necessariamente envolvidas: a do pai, a do filho e do filho do filho, pois a dívida, transmitida de geração para geração, gera um desequilíbrio permanente do sistema, com espelhamentos sucessivos da assimetria original (o filho deverá também assegurar uma esposa para si às custas do seu filho). Isso significa que dois grupos de germanos do sexo masculino e gerações adjacentes possuem interesses matrimoniais comuns — por um lado, tios paternos e pai, por outro, filho e seus primos patrilaterais — com o consequente resultado de transformar também os filhos dos filhos em participantes do jogo de dívidas-dádivas.

O que é digno de nota neste arranjo é a construção de linhas agnáticas de contornos difusos, baseadas em uma transmissão vertical de dívidas matrimoniais — isto é, a partir da tendência avuncular, não só a grade dravidiana é infletida por uma terminologia oblíquoa, como também grupos de homens passam a ser delimitados com fronteiras provisórias, numa relação mútua entre si, sem recurso à noção de descendência. O regime suporta patri-linhas, sem, contudo, tornar-se patrilinear e, assim como o sistema piaroa, a troca matrimonial visa reiterar o círculo de cognatos, dobrando a mônada endogâmica em uma abertura para dentro: em uma torção inesperada, pai e filho tornam-se rivais (o pai pode ficar com a mulher para si) e aliados (o pai pode ceder a mulher para o filho), sem prejuízo de coesão interna, uma vez que a dívida pode ser sempre projetada para frente nos filhos dos filhos, nos filhos dos filhos dos filhos etc. Trocam-se mulheres, mas o que se vê é somente a relação entre pais e filhos.

Entre os Trio, o casamento avuncular adquire contornos distintos no célebre estudo de 1969 realizado por Peter Rivière (4). O antropólogo inglês, em um golpe que nos parece decisivo, retoma a reformulação feita por Yalman da “afinidade” de Dumont (5), desta feita entendida fundamentalmente como obrigações e direitos entre irmãos e irmãs: sob essa moldura de referência, a tendência avuncular encontrada no sistema matrimonial dos Trio ressurge não meramente como contração extrema das fronteiras sociais, mas como um modo de enfatizar a relação diádica entre irmão e irmã por meio de um desvio ao afim, que acrescenta à relação original o elemento que lhe faltava, a saber, o aspecto sexual.

Essa proposição de Rivière encontra comprovação suplementar no fenômeno de adoção avuncular entre os Trio. Isso porque se partimos da proposta original de Lévi-Strauss em EEP, o casamento avuncular deveria se apresentar como um ciclo anão de aliança, em que o homem que concedera a irmã, em virtude da urgência da contra-dádiva, desde já começaria a especular na geração seguinte, reivindicando para si a filha da irmã — porém, entre os Trio, o irmão da mãe tem frequentemente uma esposa e a filha da irmã surge como uma segunda esposa, o que elimina qualquer ideia de urgência. Ademais, a jovem não é necessariamente tomada como esposa, o que permanece implícito no termo de parentesco reservado ao tio, arimikane (cuidador), e também revelado pelas declarações dos Trio quando disseram a Rivière que a filha mais nova de uma irmã não é uma emerimpada (esposa). Isto é, a adoção avuncular e a sua posterior elaboração em uma instituição matrimonial de troca são antes de mais nada vistas como figurações de uma relação que se quer originária e fundamental: aquela entre irmão e irmã. Até mesmo onde o casamento avuncular parece estar completamente caracterizado — na doação mesma da filha ainda jovem para o tio –, o que se tem não é troca matrimonial sendo figurada.

Nos três casos acima vemos a afinidade perder o seu suporte material — por um lado, ela existe, por outro, ela evapora numa “exogamia genealógica” (a troca existe para reiterar relações entre já relacionados). Pode-se dizer que a afinidade existe, porém, ela está dissociada dos seus meios efetivos de figuração. O que vemos, em três momentos distintos, é a relação entre cognatos, a relação entre pais e filhos e a relação entre irmãos e irmãs. Poderíamos, por fim, oferecer uma especulação.

Em termos rigorosamente lévi-straussianos, o domínio do parentesco é instaurado pela injunção da troca, a qual subordina a filiação e a consanguinidade à aliança (6). Contudo, temos aqui o reverso, embora isso não seja uma refutação do domínio do parentesco, senão a sua comprovação suplementar. Isso porque existe um nível ainda mais profundo a partir do qual essas relações são figuradas, que subordina a aliança, a consanguinidade e a filiação ao problema do ponto de vista — mais importante do que a troca em si são as relações que se fazem vistas umas para as outras por meio da troca.

Lévi-Strauss, 1942, catálogo NYPL

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  1. OVERING, J. The Piaroa: a people of the Orinoco basin: a study in kinship and marriage, Oxford: Clarendon Press, p. 187, 1975
  2. VIVEIROS DE CASTRO, E. O problema da afinidade na Amazônia. In: A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia, São Paulo: Ubu Editora, p. 75, 2017
  3. FAUSTO, C. De Primos e Sobrinhas. In: Antropologia do Parentesco: estudos ameríndios (Org. Eduardo Viveiros de Castro), Rio de Janeiro: Editora UFRJ, p. 61, 1995
  4. RIVIÈRE, P. Marriage among the Trio: a principle of social organisation, Oxford: Clarendon Press, p. 276, 1969
  5. YALMAN, N. Under the Bo Tree, Berkeley e Los Angeles: University of California Press, p. 358, 1967
  6. VIVEIROS DE CASTRO, E. Princípios e parâmetros: um comentário a L’exercice de la parente. Comunicações, Rio de Janeiro, v. 17, n. 4, p. 30, 1990.

MÉTODO LANDES

O começo do ensaio de Ruth Landes, “The context of marriage: family life as a field of emotions”, já denuncia um objeto ausente de estudo (1): ela deseja discutir uma forma específica da família judia, a qual já não mais existe, oriunda do shtetl, a típica comunidade judaica encontrada em cidades do Leste Europeu, a qual igualmente não mais existe. Ela diz que suas hipóteses são extraídas de uma massa de dados coletados pela Universidade de Columbia, no Research in Contemporary Cultures, a partir de entrevistas com 128 informantes que haviam emigrado para Nova Iorque dos shtetls espalhados pelas regiões da Ucrânia, Romênia, Polônia e Hungria. Como bem observa Landes, as informações que lhe chegam destes testemunhos não deixam de compor um mosaico falho, repleto de lacunas, que precisa ser minimamente costurado com hipóteses, fatos conhecidos na literatura de memórias e biografias, mas, sobretudo, com aquilo que ela mesma chamará de “nossas entrevistas esparsas”, termo lacunar que na verdade deixa implícito o recurso às suas próprias memórias de infância — Landes era filha de imigrantes judeus que, se não eram plenamente forjados nas ruelas de shtetls, possuíam vínculos fortes com o seu ambiente. Seu pai, Joseph Schlossberg, nascido em Koidanovo (atual Bielorrússia) em 1875, chega a Nova Iorque em 1888, onde já se vê obrigado a trabalhar em condições semi-escravas em uma fábrica de roupas, razão pela qual ele se recusa a fazer o seu bar-mitzvah e, anos depois, vem a tornar-se um dos principais líderes sindicais dos Estados Unidos. Sua mãe, Anna Grossman, nascida na Rússia em 1881, apesar de vir de uma família Bundista de classe média, tem também sua vida atravessada por deslocamentos e dificuldades variadas: após a morte da mãe, ela se vê obrigada a viver com outros parentes, saltando de casa em casa, à procura desde cedo de meios para assegurar sua autonomia até chegar aos Estados Unidos e se casar (2).

A menção logo no início do texto à divisão de classe do shtetl — separado entre scheyne (figuras afluentes) e proste (comuns) — talvez possa ser entendida como uma referência velada à diferença reinante no lar de Landes, com pais oriundas de classes distintas; contudo, logo em seguida, qualquer tensão é neutralizada pela afirmação da validade universal do livro Schulchan Aruch, código judaico exaustivamente seguido em todos os lares de todas as classes do shtetl. Com efeito, a conduta prescrita pelo Schulchan Aruch servirá, para Landes, como contraste face ao comportamento informal baseado, por sua vez, em regras não ditas que, embora alheias aos agentes, permanecem expressas no comportamento cotidiano. Esses dois modos de ação do shtetl irão concorrer para o equilíbrio da unidade doméstica, Sholem Bays (paz doméstica em hebraico). A esse quadro de referência, acrescenta-se uma estrutura de relações diádicas que vão pautar a família judia do shtetl: primeiro, a relação entre marido e mulher, segunda a relação entre mãe e fiho e, por fim, a relação entre pai e filha.

O primeiro eixo é marcado por diferenças de gênero bem delineadas: ao homem cabe a dedicação exclusiva aos textos sagrados, a ponto de sacrificar suas atividades econômicas (que são relegadas, assim, à esposa), ao passo que à mulher cabe a condução e administração das atividades domésticas (respeito a Kashrut, bênçãos da vela de Shabbat, manutenção do lar etc). Os papéis complementares do marido e da mulher coordenam-se para chegar a um resultado desejado: a procriação e a criação de filhos. O nascimento de um filho é anunciado com alegria pelo pai na sinagoga, em contraste com o anúncio simples do nascimento de uma filha; o pai supervisiona a educação do filho e o estimula em estudos avançados da literatura sagrada, enquanto a mãe é responsável pelos aspectos tangíveis da sua existência (alimentação, cuidados domésticos etc). Para além da supervisão em assuntos do cotidiano, a mãe é também responsável por ser a agente casamenteira dos filhos, literalmente exercendo a função de juíza da vida sexual do seu rebento — e aqui, Landes se fia na extensa literatura de memórias de homens judeus que reservam à mãe não só a narrativa daquela quem instiga e costura os vínculos matrimoniais entre as famílias, como também daquela que escolhe a noiva, a despeito da vontade do filho. Assim, a mãe judia exerce duas funções distintas embora correlatas: ela mantém e administra o bem-estar da sua unidade doméstica, ao mesmo tempo que conduz a construção de novas unidades domésticas, as quais, uma vez erguidas, tornam-se território da nova esposa/futura mãe. A posição estrutural da mãe é tão proeminente que o marido dentro do espaço doméstico regride à posição de filho na medida em que é cuidado pela esposa, o filho ascende à posição de marido na medida em que é alvo do sentimentos românticos e devotados da mãe, e a filha torna-se uma futura rival na medida em que compete pela atenção do marido. Vê-se que a “mãe” no shtetl é um ponto de articulação entre possibilidades e impossibilidades matrimoniais e, nesse sentido, instaura o domínio do parentesco, assim como a “mãe” é aquela quem estabelece o idioma geral da procriação e, nesse sentido, instaura o domínio da parentalidade. A onipresença da figura da “mãe” atesta essa transição sem sobressaltos entre os domínios do parentesco e da parentalidade — sendo não só um termo, mas sobretudo uma relação entre termos, a “mãe” assume diferentes formas a todo instante.

Neste primeiro retrato, Landes se fia na literatura de memórias de autores judeus homens e filmes de época, que lhe servem como um lente de aumento para acessar a intimidade doméstica, tanto na relação entre marido e mulher quanto na relação entre filho e mãe, em um quadro sincrônico que combina os ideais normativos do Shulchan Aruch e a pletora de regras não ditas do ethos judaico. Contudo, a terceira relação diádica permanece sem contornos precisos — como se dá a relação entre pai e filha na família judia do shtetl? A primeira lacuna nos dados é a ausência de literatura de memórias e testemunhos — há poucos livros e entrevistas de mulheres judias relatando a intimidade do espaço doméstico, sobretudo naquilo que tange a relação com o pai. A segunda lacuna que se apresenta é a ausência de prescrições expressas nos códigos judaicos para determinar a relação entre pai e filha. Somadas as duas ausências, Landes afirma que a relação entre pai e filha vai se caracterizar justamente pela informalidade: “Ela é peculiarmente dele; quando ela é pequena, seu pai a chama de “rainha” e “princesa”. Em todas as idades, ela é o único membro da família em cuja companhia o pai pode relaxar; e quando ela se casa, ele encontra no marido uma alegria que não consegue encontrar no próprio filho” (3). Podemos ver assim em que sentido as relações com afins tornam-se uma extensão das relações já existentes entre mãe, pai, filho e filha: o genro é bem recepcionado pelo pai, ao passo que a nora é antagonizada pela mãe; a noiva do filho é vista como uma substituta da mãe, ao passo que o noivo da filha é um substituto do pai. Ademais, a relação entre pai e filha vai ser uma relação destituída de maiores tensões, pois não há a rivalidade esperada entre pai e filho e tampouco há a tensão sexual-matrimonial típica do nexo entre filho e mãe: por isso, pai e filha estariam como que posicionados em um território sem expectativas sociais carregadas, dando livre curso a sentimentos amistosos; numa relação sem maior peso sociológico, pai e filha tornam-se uma sociedade ideal. Contudo, resta ainda a pergunta: se Landes não encontra relatos mais precisos a respeito da relação entre pai e filha na literatura de não ficção, ou nos dados da Universidade da Columbia, e tampouco na literatura dos códigos judaicos, da onde ela extrai um retrato tão preciso? Aqui podemos responder com uma proposição que, apesar de não ser comprovável, aumenta o sentido do texto em questão: Landes recorre às suas próprias memórias do pai, Joseph Schlossberg, para oferecer um retrato em abstrato da relação entre pai e filha nos shtetls.

Talvez seja esse um arranjo singular do material etnográfico: a pesquisadora é confrontada com um conjunto de dados, repletos de lacunas, que seguidamente lhe impõem um esforço especulativo, porém, ao contrário do que se poderia esperar, ela não preenche as lacunas encontradas a partir do confronto com outros dados que, sendo mais inteligíveis, poderiam jogar luz sobre os pontos opacos; na verdade, Landes retorna à sua própria história familiar, que lhe oferece, por fim, fragmentos com os quais constrói um esquema suficientemente abstrato para então saltar do seu caso vivido aos casos analisados. Cumpre matizar o emprego da história familiar nesse ensaio: não se trata de reduzir o investimento etnográfico a um mero reflexo de si, mas de tomar a história pessoal como um réplica em miniatura de um sem-número de casos mais complexos, o que permite à etnógrafa ver conexões e relações inteligíveis e, em seguida, elaborar variáveis para extrapolar para outros casos. Ela se move do global (a existência da família judia no contexto do shtetl, em todas as suas manifestações), para o local (a existência da sua família judia), e por fim retorna ao global, desta feita com um método para costurar os fragmentos da sua história pessoal à totalidade histórica dos casos (4). Fim surpreendente de uma etnografia contra-intuitiva: graças a um arranjo eficiente do que já se conhece (história pessoal), é possível agora jogar luz sobre o que não se conhece (lacunas dos dados). Landes não vê nos arquivos e nas entrevistas um retrato preciso da relação entre pai e filha, porém, ela sabe, a partir do seu caso, que a relação entre pai e filha joga luz sobre a estrutura geral da família judia na medida em que é a relação não prescrita por excelência, o livre reino das regras não ditas; submetendo a sua própria relação com o pai a uma re-configuração abstrata, alguma coisa se ilumina dos demais casos, a partir de uma extrapolação controlada (5).

A biógrafa de Landes, Sally Cole, nos diz: “Ruth adored her father and frequently accompanied him to union meetings, where she listened to his speeches and met activists, writers, and intellectuals in the labor socialist movement(6). E de fato, lá onde está o pai e a filha, lá estão as cores de uma relação sem constrangimento: Ruth acompanha o seu pai para uma reunião do sindicato, assim como o genro é bem recebido em um pequena cidade no interior da Polônia, assim como uma filha conversa livremente com o pai em algum lugar da Hungria etc; o exemplo pessoal de Landes ganha validade estrutural.

Ruth Landes, Red Lake, 1933 (foto: Will Rogers)

Joseph Schlossberg, Ruth e Matthew (seu irmão)



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  1. LANDES, R. ZBOROWSKI, M. The context of marriage: family life as a field of emotions, In: Comparative perspectives on marriage and the family (Orgs. H. Geiger), Boston: Little Brown, p. 77, 1968 (apesar da co-autoria do texto, gostaríamos de enfatizar aquilo que nele se apresenta como sendo particularmente de Ruth Landes: as contribuições que nos parecem vir do seu idioma conceitual).
  2. COLE, S. Ruth Landes: A life in Anthropology, Lincoln: University of Nebraska Press, p. 20-23, 2003
  3. LANDES, R. ZBOROWSKI, M. “The context of marriage: family life as a field of emotions”, In: Comparative perspectives on marriage and the family (Orgs. H. Geiger), Boston: Little Brown, p. 90, 1968
  4. ZALAMEA, F. Wittgenstein Sheaves (Anonymous, Communicated by Fernando Zalamea), Glass Beads 2020
  5. LEACH, E. Rethinking Anthropology, In: Rethinking Anthropology, Nova Iorque: Humanities Press Inc., p. 1, 1971
  6. COLE, S. Ruth Landes: A life in Anthropology, Lincoln: University of Nebraska Press, p. 25, 2003