AFINIDADE SEM AFINS

Na economia simbólica da alteridade das Terras Baixas da América do Sul (1), duas cenas adquiriram valor paradigmático: aquela da vendeta guerreira entre os antigos Tupinambá, e aquela do ritual de cabeças tsantsa entre os Jívaro. Na primeira, após ser capturado, o inimigo era transformado em afim por meio da doação literal de uma esposa, até que por fim fosse devorado no festim antropofágico, servindo como alimento para todos menos o seu assassino; posteriormente, todos os envolvidos adquiriam novos nomes (2). Na segunda cena, após ser capturado e decapitado, o inimigo tinha a sua cabeça transformada, por uma série de procedimento estéticos-simbólicos, em uma identidade jívaro genérica e, em seguida, ocupava diferentes posições sociais de afinidade entre os membros do grupo em um teatro de parentesco, até que fosse por fim descartada, deixando no ventre das mulheres a possibilidade de uma nova vida (3). Nas duas cenas, as relações entre alteridade e afinidade se iluminavam por completo, uma vez que o inimigo só poderia ser plenamente codificado como inimigo na medida em que ocupasse a posição estrutural da afinidade. Não se trocavam mulheres com o “afim” aqui, mas nomes, identidades sociais, posições subjetivas etc (4): nas cenas vemos a afinidade, mas ela se encontra separada do “matrimônio” em sentido clássico, isto é, das estruturas materiais conducentes à manutenção da lógica do parentesco. Esse mesmo modo de funcionamento pode ser observado em casos que, a priori, estariam radicalmente afastados de uma lógica predatória.

Por exemplo, entre os Pirahã, o casamento é algo incrivelmente instável, pois cada indivíduo experimenta em média, ao longo da vida, mais de meia dúzia de uniões (5). E por ocasião das separações, o homem que se separa da mulher separa-se também das suas filhas, que passam a ser capital matrimonial do atual marido da ex-esposa, ao mesmo tempo que ele adquire para si as atuais filhas da atual esposa. Isso significa que a instituição do casamento entre os Pirahã, longe de ser mera cessão de mulheres, representa, sobretudo, a aquisição de novas aliadas (filhas da atual esposa) que podem gerar novos aliados (maridos das filhas da atual esposa), expandindo a esfera de influência política de Ego masculino.

Essa retradução do parentesco encontra expressão em um ritual singular: de quando em quando os Pirahã realizam uma festa cujo propósito exclusivo é “roubar” mulheres casadas de outros homens; curiosamente, a mulher “roubada” não só integra a categoria de mulheres esposáveis, como também consente com o “roubo” e o acerta previamente com o homem “ladrão”, isto é, o “roubo” não passa de uma encenação, pois não viola as normas matrimoniais e segue à risca a lógica dos casamentos em série. Contudo, por que o casamento entre os Pirahã deve forçosamente assumir a forma de um roubo que não rouba?

Uma vez que o casamento não é conceituado como cessão de mulheres, mas como aquisição de aliadas que geram novos aliados, o “roubo” não significa extinção da afinidade mas a sua afirmação ulterior — o casamento pirahã pode e deve assumir a forma de um “roubo” paradoxalmente porque em momento algum a subtração é vista, mas tão-somente adição, acréscimo. Em uma sócio-cosmologia que não equivale a afinidade à troca de mulheres (perdas e reparação), a afinidade pode ser vista sempre por meio de imagens que parecem negá-la. Assim como nos casos tupinambá e jívaro, a relação com o afim torna-se aqui também uma relação com um valor indeterminado dentro de si, que magnifica a pessoa humana, mais do que afirma propriamente uma relação aliancista. Se entre os Tupinambá e Jívaro vemos uma afinidade sem afins, entre os Pirahã vemos uma afinidade afirmada em si mesma, apesar dos afins, que “roubam” e não trocam — por isso pode-se falar em afinidade “potencial”, pois a afinidade se apresenta sempre como pura potência, fora de formas atuais.

Acampamento Pirahã, próximo a Transamazônica. Rio Maici. (foto: Ezequias Hering, 1981)


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  1. VIVEIROS DE CASTRO, E. Imagens da Natureza e da Sociedade, In: A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia, Ubu Editora: São Paulo, p. 291, 2017
  2. CARNEIRO DA CUNHA, M. VIVEIROS DE CASTRO, E. “Vingança e temporalidade: os Tupinambás”. Journal de la Societé des Américanistes, LXXI: p.191-217, 1985
  3. TAYLOR, A-C. “Remembering to forget: Identity, Mourning and Memory Among the Jivaro”. Man, 28 (4): p. 653-678, 1993
  4. VIVEIROS DE CASTRO, E. O problema da afinidade na Amazônia, In: A inconstância da alma selvagem, São Paulo: Cosac Naify, p. 157, 2002
  5. ANTÔNIO GONÇALVES, M. A produção da afinidade no sistema de parentesco pirahã, In: Antropologia do Parentesco: estudos ameríndios (Org. Eduardo Viveiros de Castro), Rio de Janeiro: Editora UFRJ, p 221, 1995

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