O “EU” DO PARENTESCO

Entre os Maori, Prytz-Johansen nos conta, existe uma figura pronominal singular: o “eu” do parentesco (“kinship I“). Um Maori, onde quer que esteja, pode alternar entre diferentes instâncias discursivas: ora pode remeter-se ao sujeito de enunciação do seu próprio “eu”, ora pode remeter-se ao sujeito de enunciação do “eu” global, referente à totalidade maori (1).

Um chefe maori conta: “Um grupo rival assassinou meu ancestral, Taureka. Tal grupo vivia em Hokianga. Este país era deles, deste grupo. Minha casa era Muriwhenua, era minha residência permanente porque meu ancestral morava lá. Mais tarde deixei Muriwhenua por causa deste assassinato. Depois tentei vingar-me e o povo de Hokianga foi derrotado e tomei posse do velho país. Por causa desta batalha, toda Hokianga foi finalmente tomada por mim direto para Maunganui, e eu morei no campo porque todas as pessoas foram mortas” (2). Como observa Prytz-Johansenn, todos os eventos descritos pelo chefe maori transcorreram há séculos, contudo, isso não o impede de narrar os eventos em primeira pessoa – o “eu” do parentesco. Um Maori diz para outro Maori “Você nasceu em mim”, e pode fazê-lo tão-somente porque o pronome “eu”, que qualquer um pode ocupar, até mesmo o interlocutor, pode sempre significar a expressão magnificada de um “eu” que ultrapassa tanto falante quanto ouvinte.

A partir desses dados sumários, podemos nos interrogar: por que quando se trata de iluminar uma subjetividade global, os Maori não recorrem à primeira pessoal do plural – imagem por excelência do coletivo que se quer coletivo – mas ao “eu” magnificado do “kinship I”? Longe de ver aqui a solução simples de um desaparecimento do “eu” na massa coletiva, precisamos enfatizar que é graças à relação que um “eu” traça consigo mesmo que ele encontra a métrica para estabelecer relações globais: o “eu” não pode se magnificar e, portanto, se tornar função do coletivo, sem antes apresentar uma combinatória básica de elementos capaz de se contrair ao nível pessoal de um “eu” individual, assim como de se expandir ao nível inter-pessoal de um “eu” do parentesco.

Pois o que está em jogo não é somente um grupo que se atualiza no aqui e agora sob a forma de um “eu” total – mais especificamente, estamos falando de um “eu” que atravessa o presente, remonta ao passado arqui-primordial e se expande igualmente ao futuro: a realidade viva do “eu” do parentesco é que ele nasce com o primeiro ancestral e morre somente no último membro vivo do grupo. E isso se dá porque “eu” não posso ter uma ideia distinta de mim mesmo sem supor que outros tenham a mesma natureza que “eu” (3): não só o meu “eu” foi legado a mim por outrem, que me ensinou a dizê-lo (e esse outrem aprendeu a dizer “eu” com outrem, em uma regressão ao infinito), como também dizer “eu” é já pressupô-lo como dado generalizável, perfeitamente alienável pois também perfeitamente alheio ao sujeito que o diz (transferível adiante em uma projeção infinita). Assemelhando-se a si mesmo, o “eu” costura relações em todas as direções: relacionando-se consigo mesmo, o “eu” se torna a causa eficiente das demais relações.  

Página 26 do livro “The Maori Canoe”, de Elsdon Best

Página 30 do livro “The Maori Canoe”, de Elsdon Best (4)

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  1. PRYTZ-JOHANSEN, J. The Maori and His Religion in Its Non-Ritualistic Aspects, Hau Classics: Manchester, p. 28, 2012 [1954].
  2. Id. p. 29
  3. LEVY, L. O autômato espiritual: a subjetividade moderna segundo a Ética de Espinosa, Porto Alegre: L &PM, p. 488, 1998
  4. BEST, E. The Maori Canoe, Skinner Government Printer: Wellington, 1925

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